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Eis um blog aberto a todos os que encaram a educação como obra em construção permanente, em que os sucessos ou as deficiências não constituem motivos para a auto-satisfação ou o desalento mas incentivos para uma inovação permanente. B. Varela
1. Como se sabe, de entre os princípios fundamentais do Estado do Direito Democrático destacam-se os da constitucionalidade e da legalidade, nos termos dos quais tanto os cidadãos e demais entidades privadas como as entidades públicas, incluindo os órgãos do poder político e da Administração Pública, bem como os respetivos titulares e agentes, devem obediência à Constituição e à lei, que devem cumprir escrupulosamente.
Este introito vem a propósito da cobrança de propina no 7º e 8º anos de escolaridade, que o líder da UCID (União Cabo-verdiana Independente e Democrática) considerou ilegal por ocasião de uma recente intervenção através da comunicação social. Tanto quanto pude acompanhar, não consta que esta denúncia tenha sido objeto de reação por parte dos demais partidos políticos e, sobretudo, do Governo, nomeadamente através da ministra da Educação ou de outro dirigente do ministério responsável pela educação. Ora, o líder da UCID tem toda a razão, como demonstraremos nos pontos que se seguem.
2. Nos termos da alínea c) do nº 3 do artigo 78º da Constituição da República, incumbe ao Estado “garantir o ensino básico obrigatório, universal e gratuito, cuja duração será fixada por lei”.
Em desenvolvimento desta norma constitucional, o Governo, mediante autorização legislativa do Parlamento, procedeu à revisão, em Maio de 2010, da Lei de Bases do Sistema Educativo cabo-verdiano, consagrando, no artigo 14º, que o “o ensino básico é universal, obrigatório e gratuito, com duração de 8 anos”.
3. Refira-se ainda que, nos termos do artigo 13º da lei de bases em apreço, “o Estado garante a educação obrigatória e universal até ao 10º ano de escolaridade” e “promove a criação de condições para alargar a escolaridade obrigatória até o 12º ano de escolaridade”. Estamos em face de mais duas opções de política educativa que o Governo assumiu, sendo a primeira de natureza imperativa e, como tal exigível no imediato, e a segunda de cariz programático e, como tal sujeita à “reserva do possível”.
4. Importa ainda salientar que a lei de bases não só alargou a duração do ensino básico mas também procedeu à reorganização deste nível de ensino, que passou estruturar-se em três ciclos sequenciais, sendo o primeiro de quatro anos e o segundo e o terceiro de dois anos cada, cada um dos quais com a sua natureza específica, e à redefinição dos seus objetivos específicos. Um dos objetivos do ensino básico que merecem destaque (e de que nem sequer se ouve falar) é o de “proporcionar a aprendizagem de uma língua estrangeira e a iniciação facultativa de uma segunda, nas escolas que reúnam condições para o efeito” (alínea i) do artigo 8º).
5. Em consequência das inovações introduzidas no ensino básico, e tal como expressamente consagra a lei de bases em apreço, o ensino secundário passou a ser de quatro anos, compreendendo dois ciclos, de dois anos cada: o 1º ciclo, que abrange o 9º e o 10º anos de escolaridade (com uma via geral, de consolidação do ensino básico e de orientação vocacional) e o 2º ciclo, que abrange o 11º e o 12º anos de escolaridade (com duas vias: a via geral e a via técnica profissionalizante).
6. Note-se que a nova lei de bases do sistema educativo não só revogou expressamente a legislação em contrário como entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação no Boletim Oficial (artigos 93º e 94º), ou seja, a partir de 8 de Maio de 2010.
7. Assim sendo, desde há mais de quatro anos, o ensino básico “universal, obrigatório e gratuito” de 8 anos (1º a 8º anos), e o ensino secundário, de 4 anos (9º a 12º anos), encontram-se a funcionar à margem da lei.
Repare-se que não se está aqui perante normas de natureza programática, mas sim de aplicação imperativa e imediata, não estando a sua observância sujeita a quaisquer condições nem tampouco à vontade pessoal de qualquer governante, dirigente ou particular.
Por isso, a ilegalidade é flagrante em dois aspetos essenciais: o 7º e o 8º anos de escolaridade não estão a ser ainda ministrados no âmbito do ensino básico, como resulta de lei expressa, mas sim nos estabelecimentos públicos do ensino secundário; o Estado (através das escolas secundárias) está a cobrar indevidamente propinas de inscrição e frequência nos dois últimos anos do ensino básico.
8. É certo que a lei de bases prevê que “os encargos de frequência do ensino básico são suportados pelo Estado, bem como pelas famílias” nos termos a fixar por lei. Todavia, esta lei não foi ainda publicada e, quando o for, jamais deverá, sob pena de inconstitucionalidade, fixar a cobrança de propinas para o ingresso e a frequência do ensino básico.
Apesar de até agora não haver lei que regule os termos e as condições de comparticipação das famílias no ensino básico, em Cabo Verde, as famílias, de um modo geral, sempre suportaram encargos de frequência da escola primária, com a aquisição de uniforme, livros e demais materiais didáticos para os educandos, a contribuição para a cantina escolar (lanche), etc. Duvidamos que, nesta matéria, se pretenda legislar no sentido de se exigir muito mais das famílias. A ver vamos. De todo o modo, está excluída, por imperativo constitucional, a possibilidade de cobrança das propinas de frequência do ensino básico ministrado pelo Estado. De resto, tal medida seria, única no mundo, tanto quanto pudemos apurar a partir de pesquisas feitas no domínio da educação comparada.
9.Concluindo:
O Governo não estava obrigado a alargar a escolaridade básica obrigatória e gratuita para mais dois anos. Ao fazê-lo, teve certamente em vista o interesse público e, seguramente, terá ponderado as respetivas implicações e consequências. Por isso mesmo, e de forma coerente, deve cumprir a lei que ele próprio fez aprovar, com base na Constituição, sob pena de continuar a fazer tábua rasa de princípios matriciais do Estado de Direito Democrático e, em particular, de lesar direitos reconhecidos legalmente aos cidadãos. Na verdade a prática ilegal de cobrança de propinas no 7º e no 8º anos, ao condicionar a frequência escolar, em virtude do agravamento dos custos das famílias, não favorece a observância dos princípios da inclusão e da democraticidade do ensino básico ministrado na rede pública! Daí que deva repor-se a legalidade, banindo-se a cobrança das propinas nesses dois anos do ensino básico, tal como acontece do 1º ao 6º anos.
Para que não subsistam dúvidas, há muito defendi a necessidade de criação das condições para o alargamento da escolaridade básica, pelo que não está em causa a bondade intrínseca das opções vertidas na lei. Quanto ao alargamento da escolaridade obrigatória a jusante, ou seja, para 10 anos, no imediato, e, progressivamente, para 12 anos, não sou propriamente contra estas opções que, no entanto, não deixam de acarretar custos, tanto para as famílias como para o Estado (neste último caso, ainda que só em termos de ação social escolar). De notar que muitos países ricos não chegaram a tanto! Afigura-se-me, no entanto, que, havendo condições para o alargamento da educação obrigatória, será prioritária a sua efetivação a montante, mediante a criação de condições para a oferta generalizada de uma educação de infância de qualidade, preparando, assim, as crianças para um adequado e bem-sucedido ingresso no ensino básico, com efeitos positivos no sistema educativo.
Praia, 28 de Novembro de 2014.
Ph.D. Bartolomeu Varela