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Há umas poucas semanas, num dos serviços noticiosos da rádio nacional, o Primeiro-Ministro, José Maria Neves, anunciou a intenção do seu Governo de implementar até 2015 a escolaridade básica e universal de 12 anos!
 
Que eu saiba, a declaração do Primeiro-Ministro não foi retomada por qualquer órgão de comunicação social de Cabo Verde, através de entrevistas, comentários, e debates, como era, para mim, expectável. Não foi, tampouco, objecto de interpelações ou debates pelos partidos políticos. dentro e fora da arena parlamentar.
 
Aparentemente, tratou-se de um anúncio inconsequente, versando assunto destituído de relevância! Ou será que os que, como eu, ouviram o Primeiro-Ministro (dos políticos aos educadores, dos jornalistas aos analistas) entenderam tratar-se de um mero sonho ou utopia, concluindo, ipso facto, que dado o irrealismo ou surrealismo do anúncio, este não deveria ser levado a sério?
 
Ou será que os meus ouvidos “ouviram” mal? Questionei um amigo, que também disse ter ouvido a afirmação do Chefe de Governo. Ambos estranhámos que uma medida de política de tão grande importância e de alto alcance estratégico, em qualquer parte do mundo, tivesse, aparentemente, caído em saco roto, como sói dizer-se.
 
Embora não esteja em causa a bondade intrínseca da medida (desde há vários anos, tenho defendido que essa será a via a ser trilhada, como exigência do exercício pleno da cidadania e da capacitação da nação para o desenvolvimento), a forma como a mesma foi anunciada não terá sido a mais adequada, de modo a produzir o devido impacto.
 
Medidas deste quilate não podem ser apresentadas de forma avulsa, fora de uma visão estratégica e de um programa consequente de desenvolvimento da política educativa global do país. Com efeito, a implementação de uma escolaridade obrigatória de 12 anos tem consequências profundas em diversos planos.
 
Assim, a Constituição da República não impede que o ensino básico tenha a duração de doze anos, remetendo para a lei ordinária a fixação da sua duração. No entanto, a Lei Magna impõe que esse nível de escolaridade seja obrigatório, universal e gratuito, aspecto que ficou omisso na declaração do Primeiro-Ministro. Estará o país em condições de garantir uma escolaridade obrigatória e gratuita de 12 anos ou ter-se-á que rever a Constituição? A gratuitidade de uma educação básica com este figurino implicaria, assim, a redefinição da política de financiamento da educação, passando o Estado a assumir, em exclusivo, os custos da oferta de ensino não apenas nos primeiros seis anos de escolaridade (e convenhamos que, mesmo actualmente, o ensino básico não é completamente gratuito, assumindo os pais custos diversos: materiais escolares, uniforme, contribuição para a acção social escolar, etc.), mas também nos seis anos subsequentes, que correspondem ao actual ensino secundário, que, provavelmente, deixaria de existir.
 
Ligada à questão do financiamento, haverá que conceber e implementar um programa de construção e equipamento de infra-estruras escolares, que viabilizem uma resposta eficaz ao aumento previsível da procura da educação. 
 
Sem me alongar nas consequências de tal medida, a mesma teria que ser acompanhada da alteração profunda de todo o quadro legal por que se rege o sistema educativo, a começar pela Lei de Bases do Sistema Educativo, de modo a conformar a estrutura dos níveis de ensino, a carta escolar, o figurino de organização, autonomia e gestão das instituições escolares, os modelos de supervisão e controlo da qualidade da educação, etc., etc.
 
A anunciada implementação da escolaridade obrigatória de doze anos deve levar à adopção de uma série de profundas reformas educativas, tendo como ponto central o equacionamento da complexa questão curricular, não apenas em termos de definição de directrizes e orientações conformadoras da política curricular mas também e, consequentemente, a concepção dos planos curriculares, dos manuais e outros recursos pedagógicos, a redefinição da política de formação de professores e outros profissionais de educação, a adopção de modelos adequados de avaliação dos alunos e dos professores, etc.
 
 
Enfim, fiquemo-nos por aqui, que este tema é por demais complexo para ser tratado em escassas linhas. Relevo, contudo, a necessidade de um amplo e sério debate nacional sobre a política educativa em Cabo Verde, à luz dos desafios de desenvolvimento sustentável do país e das tendências da hodiernidade.
 
E apelo, por fim, aos decisores políticos, aos dirigentes, gestores e agentes educativos e à sociedade civil, em geral, para que não deixem, sem consequência, o importante anúncio feito pelo Primeiro-Ministro de Cabo Verde. É, com efeito, pela educação que os países realizam as suas ambições mais profundas, tornando-se  viáveis, competitivos, economicamente sustentáveis e verdadeiramente prósperos. Mas é também pelos erros, desacertos e omissões nas políticas educativas que os países fracassam na realização dessas mesmas ambições. Porventura mais do que em muitos países, em Cabo Verde, a aposta no capital humano, através da educação, continua a ser a chave para o sucesso!

 
 
 
 
 
 
 
 

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publicado às 20:59


2 comentários

De Euclides Lopes Furtado a 10.12.2009 às 19:44

Caro Professor Bartolomeu,

Ao ler esta sua pequena missiva, a qual, espelha um profundo conhecimento do estado da nossa Educação (em Cabo Verde) e, sobretudo, dos meandros pelos quais ela tem passado e das consequências negativas decorrentes da ausência da articulação entre a “política” e prática, o orgulho de eu ter sido seu aluno ficou mais revigorado. Aliás, acredito que esta satisfação, salvo alguma margem de erro, é (ou será) a manifestação dos meus antigos colegas do curso de Ciências da Educação e Praxis Educativa, 2001-2005, depois de lerem lido a sua missiva.

Para mim, é particularmente gratificante ter reforçado as minhas convicções de que o Professor não se enquadra no grupo de vários dirigentes vitalícios espalhados pelas instituições do ESTADO, repito do ESTADO, que, felizes a título pessoa e infeliz para Cabo Verde que tanto “amamos”, não fazem jus ao lema que aprenderam nos bancos das universidade, se por aí passaram, que é de “pensar com as suas próprias cabeças no sentido de encontrarem soluções para os problemas”, muito pelo contrário, preferem ficar presos aos discursos poéticos e à retórica.

Quando refiro-me aos discursos poéticos, não significa isto dizer que não tenho admiração pela poesia, pois se assim fosse deixaria de ser um humano. Na verdade, o que quero trazer ao de cima é a brilhante frase de Rudolf Steiner quando sublinhou que “a natureza faz do homem um ser natural, a sociedade faz dele um ser social, somente o homem é capaz de fazer de si mesmo um ser livre”.

Lhe dou os parabéns pelo facto de ter chamado atenção da sociedade cabo-verdiana, em geral, por essa postura de passividade, ou seja, de sermos politicamente correctos para não perdermos os nossos “tachos” e, em especial, aos órgãos da comunicação social e aos parlamentares, pela fraca participação e responsabilização na tomada e execução de decisões que o país realmente precisa para dar o salto qualitativo a todos os níveis, principalmente em matéria da educação.

Euclides Lopes Furtado

De Bartolomeu Varela a 24.01.2011 às 23:23

Obrigado pela tua palavras, caro Euclides. De aluno excepcionalmente aplicado a professor (colega, portanto) de grande gabarito, foste sempre e és meu orgulho! Abraço!

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