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O chefe do Governo cabo-verdiano, José Maria Neves, tem vindo a anunciar, no âmbito do ainda mal conhecido projecto “Mundu Novu”, a intenção de, até 2010, colocar à disposição de cada um dos cerca de 150.000 alunos do ensino básico e secundário um computador, sendo o denominado “Magalhães” (réplica do homónimo português) destinado aos discentes da escola básica e o computador “Gota d’Agu” (a ser construído) para os do ensino secundário.

 

Para quem, como eu, tem defendido a necessidade de inovações profundas no sistema educativo, no âmbito das quais se inclui a introdução e a massificação do uso das Tecnologias de Informação, já nos primeiros anos do ensino básico, como acontece em vários países, tal medida, que, começou a ser implementada com a entrega simbólica, na semana passada, dos primeiros “Magalhães” a uma dezena de alunos da Escola Capelinha, da Praia, por José Sócrates, Primeiro-Ministro de Portugal, país parceiro na implementação do projecto em questão, não podia deixar de merecer o meu apoio. Mas um apoio reservado, expectante, à espera do que mais virá.

 

Na verdade, a minha reserva e a minha expectativa nada têm propriamente a ver com a distribuição de um número tão elevado de computadores aos alunos do ensino básico e secundário. Penso, aliás, que esse número deveria ser aumentado: a utilização massiva e, já agora, obrigatória, de computadores aos alunos dos dois níveis de ensino, implica, antes de mais, ou, pelo menos, concomitantemente, que cada um dos professores, gestores e coordenadores dos estabelecimentos de ensino básico e secundário tenha acesso a essa ferramenta tecnológica de trabalho, sob pena de, por uma mera questão de “desigualdade de armas”, o projecto não funcionar adequadamente.

 

Mas a minha reserva e a minha expectativa têm a ver, sobretudo, com outras questões de fundo, que evidenciam que estaremos perante uma iniciativa bem intencionada mas para cujo sucesso devem estar reunidas condições, que entendo serem prévias, o que ainda não acontece. Vamos resumi-las:

 

1. Antes de mais, a generalização do uso das TIC na educação deve ser precedida de uma profunda reforma curricular, de modo a que essa ferramenta possa ser utilizada como suporte à aprendizagem nas diversas áreas ou unidades “disciplinares” (e “não disciplinares”), numa perspectiva inter, multi e transdisciplinar. Ora, os actuais programas do ensino básico e do ensino secundário foram concebidos, de um modo geral, nos finais da década de 80 do século passado, seguindo um modelo tradicional de currículo, há muito ultrapassado em termos de paradigma (trata-se de um currículo hermético, estruturado por disciplinas estanques, concebido e imposto de cima para baixo, implementado e avaliado de modo mais ou menos uniforme em todas as escolas, sem qualquer margem de liberdade de decisão e inovação a nível local…), em termos de actualidade dos conteúdos (um currículo que não reflecte a evolução da realidade nacional, está distanciado dos avanços entretanto ocorridos, nas últimas duas décadas, a nível da Ciência e da Tecnologia e não acompanha os avanços que se estão operando na educação no plano internacional e que se traduzem, por exemplo, na introdução de língua estrangeira nos primeiros anos de escolaridade), e ainda no que tange ao modelo pedagógico de acção que lhe está subjacente (um currículo que se baseia, ainda, fortemente, na transmissão de conhecimentos pelo professor, na avaliação do saber teórico memorizado, etc.).

 

2. Não existe ainda capacidade técnica nacional para assumir a liderança do processo de reforma curricular, o que pode levar-nos a “importar” e a introduzir concepções, conteúdos e práticas curriculares que não se adeqúem às exigências de desenvolvimento da educação em Cabo Verde, sobretudo se tivermos em conta a ausência de um quadro coerente de orientações conformadoras da nova política educativa e curricular, com base nas quais os especialistas ou técnicos devem trabalhar, em interacção com os docentes e outros agentes educativos. Efectivamente, não pode haver um novo currículo sem uma nova política educativa nem tampouco teremos as duas coisas sem que possuamos uma capacidade nacional de conceptualização, construção e implementação dos parâmetros curriculares.

 

3. Os nossos professores do ensino básico e secundário precisam de ser formados e ou reciclados para que possam gerir o processo de ensino-aprendizagem segundo as novas tecnologias e as novas concepções e práticas curriculares, que implicam mudanças de fundo na gestão dos currículos, na acção pedagógica e no modelo de avaliação. Em particular, as TIC não constituem uma ferramenta de decoração nem apenas de lazer; nem sequer a sua utilização constitui um fim em si mesmo, mas uma condição, via ou suporte para o sucesso da aprendizagem nas diversas áreas curriculares, de forma interactiva e através de um enfoque pluridisciplinar, o que aponta para a necessidade de os docentes estarem capacitados para, durante o horário escolar, orientarem os seus alunos no uso adequado e eficaz do computador como ferramenta tecnológica facilitora do acesso ao conhecimento e à aprendizagem.

 

4. O projecto “Mundu Novu” precisa de ser implementado no quadro de uma abordagem sistémica, participada e geradora de efeitos sinergéticos, que passa incontornavelmente pelo envolvimento do subsistema de ensino superior, em especial da universidade pública, que deve contribuir para a criação das condições anteriormente assinaladas (concepção e implementação de novas políticas educativas e curriculares, formação de curriculistas e de professores...). Ora, isso ainda não acontece, ou raramente acontece, assistindo-se a uma abordagem vincadamente “administrativista” e “fechada” das questões de fundo das políticas educativas, quando o sucesso destas implica que as altas esferas da administração educativa trabalhem, tanto quanto possível, em sintonia com o mundo académico e suscitem uma ampla participação dos diversos agentes educativos na concepção e implementação dos processos de reforma.

 

5. Por último, não estão criadas algumas condições logísticas indispensáveis a uma boa implementação do novo paradigma educacional que o projecto “Mundo Novu”, necessariamente implica e exige. Ora, tais condições devem ser criadas, sob pena de o projecto não lograr os efeitos pretendidos. Com efeito:

 

a) Os nossos alunos não possuem condições (espaços, equipamentos e professores) para permanecerem mais tempo nas escolas, como acontece em muitos países que vêm conhecendo avanços espectaculares na educação básica e secundária, e onde as escolas funcionam durante todo o dia (e não apenas durante 4h30 por dia, incluindo os, por vezes, larguíssimos intervalos para o lanche e o lazer, como acontece em Cabo Verde). Ora, na impossibilidade de suprirem, em casa, a insuficiência do tempo escolar, a criação de condições para que os nossos alunos possam estar mais tempo na escola é algo imprescindível para que usufruam de mais horas úteis para a sua formação escolar e, nomeadamente, para se iniciarem nas TIC e ou delas tirarem o melhor proveito, com o devido acompanhamento por parte de docentes qualificados. Na impossibilidade de poderem frequentar a escola durante todo o dia, do início da manhã ao fim da tarde, posto que esta opção levaria a duplicar o número de infra-estruturas educativas existentes, sugiro que, numa primeira fase, se privilegie a criação, a nível de cada escola, de, pelo menos, uma Sala de Tecnologias, com acesso à Internet, que funcionaria, ao longo do dia e da semana, sob a orientação de um ou mais professores-tutores, encarregados de acolher, acompanhar e orientar grupos de alunos, em horários diferentes dos das demais aulas. Se cada aluno puder frequentar, em cada semana, algumas horas de complemento curricular, nomeadamente, nas TIC, já é bom para começar! Esta sugestão, que vai, aliás, na linha dalgumas experiências em curso, não exclui, obviamente, a utilização adequada do computador durante as 4h30 do actual horário escolar (vide parte final do ponto 3).

 

b) Fora da escola, a esmagadora maioria dos alunos não tem a possibilidade de acesso à Internet, que exige não apenas a posse de um computador, mas também capacidade financeira para suportar os encargos inerentes. A sugestão que apontei na alínea anterior poderia ajudar a suprir as dificuldades de utilização plena do computador em casa. Paralelamente, as políticas de acessibilidades, incluindo as políticas tarifárias, as praças digitais e, com o tempo, as aldeias digitais irão encarregar-se de resolver o problema, mas, até lá, há que encontrar formas de combater a info-exclusão, sem prejuízo para a utilização das já escassas quatro horas e meia de leccionação nas nossas escolas básicas e secundárias.

 

Enfim, se o Governo dá um impulso, facilitando o acesso ao computador, importa que a Administração Educativa conceba e implemente uma agenda estratégica de inovação educacional de modo a que o projecto “Mundu Novu” não seja apenas a expressão de um modismo inconsequente mas se traduza numa oportunidade para transformar a educação numa força indutora de um desenvolvimento sustentável.

 

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publicado às 11:43

No passado fim-de-semana, ao ouvir uma das intervenções do Primeiro-Ministro português, José Sócrates, proferida no Congresso do PS, chamou a minha atenção o anúncio de duas medidas que ele se propõe implementar, no quadro da reforma do sistema educativo português: a generalização do acesso de todas as crianças de Portugal a um ano de educação pré-escolar (que serve de propedêutica para o ingresso no ensino básico); a promoção do acesso de todos os portugueses a uma escolaridade de doze anos, como condição essencial para a elevação do nível de formação dos jovens de Portugal, preparando, assim, o país para responder aos novos desafios da hodiernidade.

 

Ainda que apresentadas em momento de pré-campanha eleitoral, tais medidas não deixam de ser de grande relevância.

 

Em relação à primeira medida, eu próprio a defendi para Cabo Verde, recuparando, num contexto diferente e com contornos bem adequados, a experiência efêmera de introdução da chamada classe pré-primária em Cabo Verde, nos últimos anos de dominação colonial portuguesa, e que o primeiro Governo do novo Estado independente viria a extinguir, alegando, com razão, a falta de condições técnico-pedagógicas para a sua manutenção.

 

Na verdade, o acesso à escola básica aos seis anos de idade (finalmente generalizado em Cabo Verde no início deste ano lectivo) continua a ocorrer num quadro de desigualdade de oportunidades: uma parte expressiva de crianças, porque bafejadas pela sorte ou pela fortuna, entra na escola primária já com uma passagem pela educação pré-escolar, ministrada, normalmente, durante dois anos, em jardins-de-infância privados ou municipais; a outra parte, porque não teve oportunidade de acesso a tais jardins, normalmente devido a carências socio-económicas das suas famílias, entra na escola básica sem beneficiar das actividades de socialização em ambiente educativo e de  preparação (propedêutica) para a iniciação escolar.

 

Assim, a igualdade de acesso ao ensino básico só acontece em relação à idade (6 anos), mas não no que tange à preparação efectiva das crianças para o ingresso na escolaridade obrigatória. Ora, em nome do princípio constitucional da igualdade (que deve ser entendida na sua plenitude, incluindo a igualdade de oportunidades), e tendo em conta as vantagens socio-pedagógicas que proporciona, a medida de generalização do acesso ao ensino básico após a frequência de, pelo menos, um ano de educação pré-escolar, afigura-se absolutamente justificável. Pode argumentar-se que é pouco um ano, ao que contra-argumentaríamos, dizendo que em ano uma criança de cinco anos pode beneficiar muito de uma educação pré-escolar bem organizada, em termos curriculares e técnico-pedagógicos.

 

Poderá questionar-se acerca das condições de financiamento desta medida, mas acredito que a conjugação dos esforços das famílias, das ONG's e demais entidades privadas, do Estado e dos municípios logrará ultrapassar o problema. Basta haver vontade efectiva de investir um pouco mais nas "flores da nossa luta", como Cabral, metaforica e poeticamente, se referia às nossas crianças.

 

Quanto à outra medida anunciada por Sócrates (acesso  generalizado a 12 anos de escolaridade), não ouso, obviamente, defendê-la, no imediato, para Cabo Verde, mas para lá caminharemos, um dia, importando, para já, que se avance com a generalização do acesso aos dois primeiros anos do actual ensino secundário. 

 

Efectivamente, como tenho defenido, a preparação para o exercício da cidadania, missão essencial e universal do ensino básico, vai-se tornando uma tarefa cada vez mais exigente, a demandar mais investimento em anos de estudo. O cidadão de hoje é confrontado com exigências outrora inimagináveis; mais do que exercer o status de membro de uma cidade e de um Estado, o cidadão de hojé é, cada vez mais, cidadão da aldeia global que é o mundo de hoje, pelo que terá de ser preparado para se tornar competitivo à escala universal e não apenas a nível do seu país natal.

 

Assim, tendencialmente, o actual ensino secundário vai reduzindo a sua duração em número de anos, em proporção inversa à do aumento do número de anos do ensino básico, até chegar (esse ensino secundário) a desaparecer, como já se verifica em outras paragens. A seu tempo, à medida em que vai crescendo, Cabo Verde chegará a esse patamar.

 

Não basta, porém, alargar o acesso a níveis de escolaridade, a montante e a jusante. É sumamente importante, também, que o alargamento do acesso seja acompanhado do acrescentamento de valor aos diferentes anos ou ciclos de estudos, para que o desafio da formação do "capital humano" seja vencido. E só o será na medida em que a escola (com o envolvimento da soiedade em geral) prepare efectivamente os cidadãos para o ingresso na vida activa, em condições que propiciem, a um tempo, a sua realização pessoal, social e profisional e  a construção, em bases sustentáveis do desenvolvimento social.

BV

 

 

 

 

 

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publicado às 22:40


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